segunda-feira, 6 de junho de 2011

há quase vinte anos

Meu corpo que sobre rugas se desdobra padece em desesperança, sou indiferente à mim; isto que me sobra... ainda pareço mulher?, se não sou tocada tampouco acariciada como tal?, assumo que costumava receber este homem em meu sexo somente por cumprir tal papel, mas nem isso mais; o tempo nos desaprendeu; não mais nos sabemos enquanto afirmamos pirracentos todas as diferenças. Torcemos teimosamente contra nós mesmos há quase vinte anos, mas não arredamos o pé. Ando cansada demais e assim vou me esgueirando pelos cantos desta casa, com uma falta de tudo enraizada no fundo, tenho uma vontade perdida de me achar dando as mãos ao medo de me encontrar escangalhada demais, a velhice vem todos os dias me avisar que está próxima – vejo isto em você também, o descuidado é tanto; nos desperdiçamos meticulosamente como dois mestres, estamos apegados ao estrago que viramos, a fadiga é tamanha que neste mundo sem valorização o progresso é uma piada infeliz, que desgraça; duas almas encolhidas de medo. Meus pulmões costumavam ser estufados de imediato para supostas controvérsias, porém nem isto me excita os órgãos, você não me comove, e isto também não me entristece mais. Parasitamo-nos e descompreendemos o amor de dentro, somos lindamente desvirginados pela desventura; tudo por pura escolha...

quarta-feira, 16 de março de 2011

PARA MINHA MENINA, AGORA MULHER - texto de Lara Gay

PARA MINHA MENINA, AGORA MULHER

Quando a menina cresceu, ela nem percebeu.
Um dia a boneca acordou no fundo do armário, em outro lar.
Em cima dela, roupas e cartas de amor... de um amor, o tal amor que agora divide a cama da menina.
Não mais menina.
Luzes baixas ao som de novos timbres.
Tão distante de tudo que era. Nova.
Quando a menina morreu, ela nem percebeu.
Uma noite agarrou a boneca e voltou pros braços da mãe, no velho lar.
No colo dela, lágrimas e silêncio... em berros, o tal grito entalado que agora sufoca o peito da mulher.
Mais mulher do que nunca.
No escuro ao som do amor da mãe.
Tão perto de tudo que era. Mais nova.
A menina, sem perceber, morreu ao crescer em dor. De mulher.
Surgiu de dentro daquela boneca a fortaleza esquecida em qualquer canto.
Tão firme. Tão linda. Tão nova.
De repente, é precisar voltar ao que se era velho pra encontrar o que se quer de novo...
... mesmo que seja de novo... ou a primeira vez.

Rio, 16/03/2011

Presente de Lara Gay, minha amiga. Minha alma irmã.



-

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Uma descoberta em duas partes


não sei se é por teimosia ou medo
que cismo em dar as costas pro futuro
e me encarar feia, feito uma adoração à penitência
como se isto me fosse uma gloriosa e justa salvação:
a iluminada liberdade do pecador.

mas acontece
que eu descobri
como se fosse proibido, eu descobri

que assim é fácil.


e aí
desta vez eu não briguei comigo.


Sem maus tratos, posso me ouvir
sabe, descobri um lugar lindo
- pois é, em mim há lugares assim também -
tranquilo, suave, leve
( porém não menos vívido )
e nele ponho-me a trabalhar o que ainda não sei
sem pressa de entender
meu futuro não me espera
ando com fome, porém não insaciável
tentar engolir o mundo é devastador
- já não preciso lidar com esta frustração
então, um pouquinho de mim a cada gole
eis aqui meu gosto
quanta propriedade se precisa para usar "meu"?
não serei dona de mim - não quero
mas trabalho para me olhar
e então

olhar para frente.


-